Oito coisas que todo mundo deveria saber sobre a China é o título do artigo publicado pelo empreendedor Endeavor e fundador da MaxMilhas, Max Oliveira, após participar da missão Endeavor ao país.
A viagem durou pouco mais de uma semana e durante ela ele visitou as cidades de Pequim, Shangai e Hangzhou. “Quando finalmente achei que estava entendendo tudo, no último dia de viagem conheci um francês que mora na China há dez anos, e ele me disse: “Com uma semana, você conhece a China, com um mês, você tem uma opinião sobre a China e, com um ano, você percebe que não sabe nada sobre a China”.
A China é um país gigante e de cultura milenar, beleza sem igual, mas enfrenta uma série de obstáculos para inovar. O governo chinês, além de manipular, copia, se apropria, monitora e controla toda a população. Redes sociais no país, só as chinesas, e sem privacidade alguma. As câmeras que protegem, são as mesmas quem controlam e tiram a privacidade. A China tem muitas particularidades, e foi pensando nisso que Max Oliveira escreveu: “Oito coisas que todo mundo deveria sobre a China”.
Confira:
1. A China “sempre” foi a potência mundial
A gente estuda muito pouco sobre a história da China nas escolas do ocidente.
In loco, um gráfico mostra que a China, desde o nascimento de Cristo, teve a maior geração de riqueza do mundo até o século XIX. Uma guerra marcou essa mudança: a sangrenta Guerra do Ópio de 1839. Apesar de terem inventado a pólvora, não tinham poder de fogo. Para não ser totalmente dizimada, cedeu algumas regiões portuárias a Inglaterra, entre elas Hong Kong, problema que persiste até hoje. Depois dessa derrota, ainda houve algumas outras batalhas não bem-sucedidas contra o Japão. Isso marcou os anos entre 1839 e 1949 como o século da humilhação chinesa, levando a população a miséria extrema.
Até a década de 90 – fruto do fracasso do modelo comunista adotado por Mao Tse Tung – a China era uma das populações mais pobres do mundo inteiro, comparada ao patamar dos países mais pobres africanos que ainda hoje persistem na miséria. Uma das maiores tragédias foi a grande fome chinesa entre os anos de 1958 e 1961, período em que, devido a péssimas políticas econômicas do Governo comunista, priorizando a revolução industrial tardia do país, faltou alimento para centenas de milhões de pessoas, com um número estimado de mortes que varia de 15 a 55 milhões. Fato é: isso é muito recente e ainda influencia a cultura do país.
Quando Deng Xiaoping assumiu em 1978, decidiu abrir a economia comunista do país e investir em estruturas fabris. Com mão de obra extremamente barata, a China se tornou a fábrica do mundo. Com isso, o PIB do país começou a crescer e também sua renda per capita.
2. De fábrica do mundo para referência em tecnologia
Em 2013, o presidente Xi Jinping começou a investir em tecnologia. Começaram a combater a pirataria – centros comerciais foram fechados pela polícia – e a corrupção, com milhares de pessoas desaparecidas. Decidiram apoiar alguns setores que iriam viabilizar essa mudança no país, entre eles a Inteligência Artificial. A China tem o objetivo de ser potência mundial nesse tema até 2030. No entanto, enquanto o ocidente está implementando leis bem rígidas de proteção de dados, o famoso LGPD, com multas bilionárias para empresas que têm utilizado inteligência artificial com os dados de seus usuários, as empresas na China possuem praticamente todos os dados de seus usuários e nenhuma regra para seguir. Especialistas dizem que os dados são, na verdade, o petróleo do futuro. Ou seja, quem tiver mais informações sobre as pessoas e conseguir fazer um bom trabalho com isso, construirá os próximos impérios.
Existem em torno de 400 milhões de câmeras espalhadas pelo país e, com tecnologia de reconhecimento facial, é possível identificar cada pessoa na rua. Como todas as empresas compartilham seus dados com o Governo, o estado consegue controlar a vida da população, garantindo que sigam as regras do país. Porém, com isso, perde-se o conceito que conhecemos como privacidade. Os chineses vivem num grande big brother. Isso facilita também o controle do Partido do Estado que, com todas as informações em mãos, consegue conter qualquer iniciativa contra o seu poder.
3. O papel do Governo no China
O papel do Governo na China é fundamental para a evolução do país. Nos últimos 30 anos, presenciamos a maior ascensão social da humanidade. Foram mais de 700 milhões de pessoas saindo da zona da miséria, definida pela ONU como renda de até US$ 1,90 por dia.
O Governo de lá criou um parque industrial para as maiores siderúrgicas do país operarem arcando com todo o custo de energia elétrica, um dos maiores custos do setor. Esse incentivo possibilita um preço imbatível na competição global.
A maior empresa do país, Alibaba, começou com um apoio crucial do Governo. Jack Ma, o homem mais rico da China, ao ver a internet nos EUA, começou, ainda em 1995, a desenvolver sites para que companhias locais conseguissem vender produtos online para o exterior.
Quando o Yahoo, maior empresa de tecnologia na época, no começo dos anos 2000 quis entrar na China, o Governo exigiu que, para terem operação no país, precisavam escolher uma empresa chinesa e investir US$ 1 bilhão para um valuation (valor total da empresa) de US$ 5 bilhões.
O Governo escolhe alguns setores da economia como prioridade e, se o seu negócio é uma das maiores empresas desse setor, terá privilégios. Acredito que a competição entre as empresas para se destacarem é bem acirrada. É um mercado que as pessoas têm como prioridade máxima o trabalho, com o famoso regime 9-9-6 (trabalho de 9 da manhã às 9 da noite, 6 dias por semana, de segunda a sábado).
A grande maioria da população ativa chinesa atual precisa trabalhar insanamente, pois sustentam a sua família e de seus pais. Com a política do filho único que durou por cerca de trinta anos no país, o padrão da sociedade é os jovens se casarem e levarem os pais, tanto do homem quanto da mulher, para morarem todos juntos. Isso quando conseguem se casar, uma vez que existem quarenta milhões mais homens do que mulheres – legado também do período de filho único, quando os casais privilegiavam o nascimento dos meninos que tinham mais força para o trabalho rural, provavelmente sacrificando as meninas. Assim, atualmente o casal precisa sustentar seus filhos, a si mesmos e aos avós da casa. A responsabilidade de criação das crianças da casa é dos avós, já que os pais passam mais de 70 horas por semana no trabalho.
Outro tema que é prioridade para o Governo atualmente é o blockchain. Conhecemos um francês que tem uma empresa que atua com essa tecnologia. Ele tem subsídios como o aluguel em região bem cara da cidade bancado pelo Estado. Portanto, também estão incentivando empreendedores estrangeiros, caso atuem na área de interesse do Partido, a terem suas empresas na China. Em troca, o Governo precisa ter acesso a toda sua tecnologia. Assim, os chineses aprendem com o resto do mundo sobre os temas que acham importantes e se preparam para dominar o planeta.
5. As empresas chinesas não são globais ainda
Durante a nossa viagem, visitamos a muralha da China. Foram mais de 21 mil quilómetros construídos em quase 2.000 anos, protegendo o povo chinês de ser invadido por bárbaros da região. De certa forma, acredito que a história esteja se repetindo. Agora a muralha é virtual, the great firewall. O Governo chinês construiu uma barreira online que não permite que as pessoas acessem diversos sites e apps estrangeiros. Assim, filtram toda a informação que chega até seu povo e, ainda mais importante, bloqueiam as grandes empresas americanas de entrarem e dominarem o mercado chinês.
As pessoas na China não têm acesso à Amazon, o que possibilitou o Alibaba e JD.com crescerem tanto. Não têm acesso ao Google e Youtube, possibilitando o Baidu e o Youku, nem ao Facebook, Instagram e Whatsapp, dando espaço ao WeChat da Tencent e ao novo meteoro chinês chamado TikTok. Nem ao Netflix, tendo o QIY.
Não há dúvidas que a “muralha virtual” foi crucial para o desenvolvimento dos gigantes chineses de tecnologia. As empresas chinesas conseguiram dominar o seu mercado interno. Atualmente, existe um grande monopólio no país entre o Alibaba e a Tencent que, juntas, são responsáveis por 90% de todas as compras via mobile do país (via Alipay e WeChat) e 50% de todo investimento de capital de risco em empresas chinesas.
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O WeChat é utilizado basicamente apenas na China. Recentemente até proibiram o acesso ao app por estrangeiros. Fato é que o Governo tem acesso a todas as conversas no aplicativo. E o administrador do grupo responde pelas ações de todos do grupo. Assim, se alguém fala mal do Partido em algum grupo, não apenas o administrador retira a pessoa na mesma hora, como algumas pessoas saem do grupo com medo.
6. Não se engane, não é apenas escala
Sim, só é possível criar esses impérios atendendo apenas ao mercado doméstico dado o tamanho da população do país. Muitas vezes, achamos que tudo na China se justifica pelos 1,4 bilhões de habitantes. Quando analisamos os números mais de perto, vemos que talvez não seja bem assim. A população da China é por volta de 7x maior que a do Brasil. Atualmente, forma-se cerca de 4,7 milhões de profissionais de tecnologia (na verdade, os chamados STEM: Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática). É o maior de todo o mundo.
Para todo número que vemos da China, é necessário aplicar a regra de três para ter a real noção de seu tamanho. Como exemplo, o número de unicórnios – empresas privadas com valuation acima de um bilhão de dólares – são mais de 200 na China. Logo, o Brasil deveria ter por volta de 30, porém, ainda não chegamos a 10. Nos EUA, se demora em média sete anos para uma empresa virar unicórnio, enquanto na China apenas quatro anos.
Alguns casos são tão bizarros que, a meu ver, parece ser uma pirâmide que vai despencar, como o caso da Luckin Coffee. Em menos de três anos, eles foram do zero ao IPO e valem, hoje, quase cinco bilhões de dólares na bolsa de valores. Nunca tiveram lucro. Só em 2018, foram 116 milhões de dólares de prejuízo. São uma cópia do Starbucks, porém, com preços mais baratos. Acredito que, em algum momento, o mercado vai entender que não terá outro investidor para pagar mais caro em algo sem capacidade de gerar lucro. Aí os últimos investidores perderão bilhões.
Importante citar que, como os próprios especialistas dizem, os números na China não são precisos. A falta de transparência das autoridades e o volume de pessoas fazem com que nos deparemos com alguns números diferentes.
7. A China vai dominar o mundo?
Se você colocar as projeções de crescimento atuais num gráfico, verá que o PIB da China deve passar o dos EUA em 2030, virando a maior economia do mundo. Lógico que os EUA terão uma década para reagir e vão tentar, claro. Aliás, as sanções comerciais que preocupam todo o mundo estão em alta. Acredito que não tenha como segurar. Agora, será que ela vai dominar outros países não apenas economicamente, influenciando as suas políticas internas e transmitindo a sua cultura? Será que, daqui algumas décadas, todos no mundo terão que falar chinês ao invés do inglês se quiserem se aventurar em terras internacionais?
Vemos também o crescimento de investimentos de empresas chinesas ao redor do mundo. A compra da Skyscanner pela Ctrip por mais de um bilhão de dólares surpreendeu o mundo. Marcas estrangeiras consagradas também passaram para as mãos dos chineses, como a sueca Volvo e a italiana fabricante de pneus Pirelli. O Brasil não está fora. A Tencent investiu no Nubank, de olho nos milhões de usuários do banco digital.
Um assunto que está em alta é a rota da seda, projeto do governo chinês que vai financiar infraestrutura para conectar o mundo, investindo em portos e ferrovias de diversas nações, conseguindo vantagens em troca. Por fim, se a Huawei conseguir ganhar a guerra da internet 5G, imagina o mundo inteiro usando uma internet que o Governo chinês tem acesso e utiliza os dados indiscriminadamente?
8. O que vai acontecer quando as prioridades da população chinesa mudarem?
Entendendo todo o histórico, se compreende como o Partido atual, que está no poder desde 1949, tem aprovação popular. Num país onde a prioridade da maioria da população é sobreviver à fome, ficam em segundo plano a perda de privacidade e a privação de informação e serviços globais.
Com o aumento da renda da população, será que esses outros pontos tão valorizados pelo ocidente começarão a ser um desejo do povo chinês? Se for, será que o Partido conseguirá manter a ordem e submissão de sua nação com mais de um bilhão de pessoas depois dessa ascensão social?
Conversamos com uma empreendedora brasileira há mais de cinco anos na China que nos contou como as leis trabalhistas ali eram como as do Brasil, se não mais restritas. Ela nos disse, ainda, que a maioria dos jovens que tem contratado já vem de família rica chinesa, que não quer trabalhar, se frustra facilmente e decide fazer um ano sabático. Disse que o judiciário privilegia os empregados de tal forma que ela, raramente, demite um funcionário e quando o faz o paga três meses de salários na rescisão para evitar que ele vá a justiça. Para ela, não existe o 9-9-6 chinês.
É um paradoxo muito grande, pois, na mesma cidade, eu pude presenciar um evento social que condiz com outra realidade que me marcou. Fomos na Praça do Povo no sábado e vimos centenas de idosos sentados atrás de um guarda-chuva com a foto e descrição de jovens homens e mulheres pregada nos seus respectivos guarda-chuvas. Eram os pais tentando achar uma pessoa para seus filhos se casarem. Nos folhetos, diziam suas idades, trabalho, renda etc. Alguns exibiam, outros passavam analisando. É uma espécie de Tinder off-line. Como os filhos precisam trabalhar muito para sustentar a casa, não tem tempo de procurar um par. É muito importante para a família que eles casem, uma vez que são praticamente todos filhos únicos. Assim, eles agendam encontros entre os jovens que se conhecem e decidem se seguem com a escolha de seus pais (pelo o que entendi o jovem pode escolher sim se deseja de fato casar com a escolhida ou não e vice versa).
Na mesma cidade, vemos realidades muito diferentes. Fica difícil imaginar como a sociedade vai reagir há tantas mudanças em um intervalo tão curto de tempo.
E para finalizar…
Você pode ter estranhado o fato do artigo pular o item 4. Ir à China é um pouco disso, você se estranha com quase tudo que vê. Quatro é o número do azar na cultura chinesa, com sonoridade parecida com a palavra morte, então, decidi pular. Mesmo assim, decidi manter as “Oito coisas” no título.
Para ler o artigo na íntegra, clique aqui.
Foto: Justin Lim.