O real digital: prático e inclusivo, porém orwelliano

O real digital: prático e inclusivo, porém orwelliano

As moedas digitais são de grande interesse para os governos emissores.

Por Redação em 03/05/2022

O real digital, de fato, ao menos no curto prazo, pode ser prático.

Você pode pagar pelo que comeu em um restaurante usando Pix de forma instantânea e sem taxas. Porém… Definitivamente não existe almoço grátis.

Enquanto isso, o número de desbancarizados, embora em declínio, ainda é grande (34 milhões de pessoas no Brasil). Um número cada vez maior de pessoas tem acesso a internet, contas bancárias e etc.

Por que o governo adotaria o real digital?

As fintechs e as big techs (Apple, Amazon, Alphabet, Microsoft e Facebook) estão dedicando recursos multibilionários para retirar os bancos da intermediação dos meios de pagamento. 

Há muita demanda reprimida por uma forma imediata e segura de transferir dinheiro via Whatsapp, Facebook ou outras redes, nacional ou internacionalmente, independente dos bancos.

O Mercado Livre acaba de anunciar um aplicativo para pagamentos digitais dedicado a criptomoedas. Começando pelo Brasil, clientes poderão comprar, vender e custodiar ‘criptos’ em suas carteiras digitais no MercadoPago

Um dos problemas é que uma moeda digital não estatal rápida e segura pode afastar as pessoas da moeda estatal em curso no país, o que culmina em menos poder de intervenção para o governo e o banco centra.

Para evitar que isso venha a ocorrer — e sabendo ser inevitável o avanço tecnológico e impossível abolir a tecnologia —, os bancos centrais foram impelidos a aprimorar seus próprios sistemas centralizados de pagamento, e a vislumbrar a versão digital de suas moedas oficiais. 

No Brasil, o primeiro passo foi o Pix (“front end“), um êxito espetacular em termos de aceitação. O passo seguinte, o “back end“, seria o real digital, que circularia pari passu às cédulas de real.

O problema é que a implantação do real digital é incrivelmente desafiadora.

Se você pode colocar sua moeda digital em uma carteira própria voltada para moedas digitais, e pode enviá-la para quem quiser por meio desta carteira, você não precisa do sistema bancário. Consequentemente, a perda de depósitos causará uma redução imediata e forçada dos empréstimos dos bancos, causando um efeito transitório altamente recessivo. Mas isso é o de menos. Há um outro lado mais sombrio. 

Entra Orwell

Em uma monografia publicada na conferência da Mont Pelerin Society neste mês (ainda não disponibilizada na internet), o economista Fernando Ulrich argumenta que o real digital significará o “absolutismo monetário”, permitindo data de validade para o seu dinheiro, bloqueios, taxas de juros negativas, fiscalização estatal de todas as transações, e outras violações.

De forma sucinta, eis um possível futuro:

1) Moedas em espécie deixarão de ser emitidas.

2) Qualquer pessoa com smartphone irá usar moeda digital.

3) O Banco Central terá controle absoluto sobre cada unidade de moeda digital. Com o blockchain — que grava toda e qualquer transação financeira — ele saberá, a todo momento, exatamente quem detém qual dígito em qual carteira. Ele saberá a exata quantia que cada indivíduo tem em suas carteiras digitais.

4) Consequentemente, o BC poderá fazer o que quiser. Poderá livremente criar moeda e enviá-la diretamente para a carteira eletrônica de quem ele quiser. Poderá bloquear rapidamente a carteira de um indivíduo. Poderá aumentar ou diminuir a quantidade de dinheiro estatal em circulação com um clique.

Punição de infratores e recompensa de aliados com pouco esforço e de forma praticamente imediata

Por saber exatamente quem detém quantos dígitos, e por estar ciente de toda e qualquer transação monetária (que serão feitas via transferência de dígitos entre carteiras, e que ficam gravadas no blockchain), ele também terá o poder de tributar e redistribuir. Dinheiro que está na sua carteira poderá ser repentinamente enviado a outra carteira, ou simplesmente apagado. Poderá também ser multiplicado.

Seria possível, por exemplo, a adoção de um sistema de várias taxas de juros, controlado inteiramente pelo banco central. Não mais serão os bancos tradicionais que irão determinar os juros de acordo com riscos ou disponibilidade de capital. Os bancos centrais poderão estipular o custo de capital que quiserem para qualquer indivíduo ou empresas que escolherem.

Os bancos centrais, em suma, terão o poder de criar e destruir moeda diretamente nas carteiras dos cidadãos, contornando completamente o sistema bancário e toda a burocracia estatal.

Este é um arranjo saído diretamente de um livro de George Orwell. Trata-se de um Big Brother em tempo real. Em posse de todos os dados da atividade em tempo real, os bancos centrais poderão implantar decisões de política monetária e fiscal visando a criar incentivos diretamente, tanto na forma de recompensa quanto de punição. Eles poderão afetar o comportamento humano de uma maneira bem mais sutil e discreta do que as tradicionais políticas monetária e fiscal. 

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Foto: Eduardo Soares