Evidências da origem do Coronavírus – Parte 5

Evidências da origem do Coronavírus – Parte 5

Esta é uma tradução do texto de Nicholas Wade. Wade é escritor, editor e autor, tendo trabalhado na equipe das revistas Nature, Science e, por muitos anos, no New York Times.

Por Redação em 10/03/2022

Esta é uma tradução do texto de Nicholas Wade. Wade é escritor, editor e autor. Para ver o texto anterior, a quarta parte, clique aqui.

Comparando os cenários rivais da origem do SARS2

As evidências acima [citadas na parte 4] dão força para a hipótese séria de que o vírus SARS2 poderia ter sido criado em um laboratório, do qual escapou. Mas a hipótese, por mais substância que tenha, fica aquém da prova. A prova consistiria em evidências de que o SARS2, especificamente, ou um vírus predecessor estava em desenvolvimento no Instituto de Virologia de Wuhan ou laboratórios relacionados. Por falta de acesso a esses registros, outra abordagem é pegar certos fatos importantes sobre o vírus SARS2 e perguntar o quão bem cada um desses fatos é explicado pelos dois cenários rivais a cerca da origem, isto é, o cenário de emergência natural e o de fuga de um laboratório. Aqui estão quatro testes das duas hipóteses. Alguns têm alguns detalhes técnicos, mas esses estão entre os mais persuasivos para quem quiser acompanhar o argumento.

1) O local de origem.

Comece pela geografia. Os dois parentes mais próximos conhecidos do vírus SARS2 foram coletados de morcegos que vivem em cavernas em Yunnan, uma província do sul da China. Se o vírus SARS2 tivesse infectado primeiro as pessoas que vivem ao redor das cavernas de Yunnan, isso apoiaria fortemente a ideia de que o vírus havia se espalhado para as pessoas naturalmente. Mas não foi isso que aconteceu. A pandemia eclodiu a 1.500 quilômetros de distância, em Wuhan.

Os beta-coronavírus, a família de vírus de morcego à qual o SARS2 pertence, infectam o morcego-ferradura Rhinolophus affinis, que está espalhado pelo sul da China. O alcance dos morcegos é de 50 quilômetros, então é improvável que algum tenha chegado a Wuhan. De qualquer forma, os primeiros casos da pandemia de Covid-19 provavelmente ocorreram em setembro, quando as temperaturas na província de Hubei já estão frias o suficiente para colocar os morcegos em hibernação.

E se os vírus do morcego infectassem algum hospedeiro intermediário primeiro? Para isso, você precisaria de uma população de morcegos que ficou por muito tempo e com muita frequência em proximidade com o hospedeiro intermediário, que por sua vez deve frequentemente cruzar o caminho das pessoas. Todas essas trocas de vírus teriam que ter ocorrido em algum lugar fora de Wuhan, uma metrópole movimentada que, até onde se sabe, não é um habitat natural de colônias de morcegos Rhinolophus. A pessoa infectada (ou animal) portadora desse vírus altamente transmissível teria que ter viajado para Wuhan sem infectar mais ninguém. Nenhum familiar. Nenhum passageiro, caso a pessoa hipotética infectada tivesse ido de trem até Wuhan.

É um exagero, em outras palavras, fazer com que a pandemia surja naturalmente fora de Wuhan e depois, sem deixar vestígios, faça sua primeira aparição lá.

Para o cenário de fuga do laboratório, uma origem em Wuhan para o vírus é óbvia. Wuhan é o lar do principal centro de pesquisa de coronavírus da China, onde, como observado acima, os pesquisadores estavam manipulando geneticamente os coronavírus de morcego para atacar células humanas. Eles estavam fazendo isso sob as condições mínimas de segurança de um laboratório BSL2. Se um vírus com a inesperada infecciosidade do SARS2 tivesse sido gerado lá, sua fuga não seria surpresa.

2) História natural e evolução

A localização inicial da pandemia é uma pequena parte de um problema maior, o de sua história natural. Os vírus não saltam abruptamente direto de uma espécie para outra. A proteína spike de coronavírus, adaptada para atacar células de morcegos, precisa de saltos repetidos para outras espécies, a maioria dos quais falha, antes de ganhar uma mutação funcional que afete humanos. A mutação – uma mudança em uma de suas unidades de RNA – faz com que uma unidade de aminoácido diferente seja incorporada em sua proteína spike e a torna mais capaz de atacar as células de algumas outras espécies.

Por meio de vários outros ajustes baseados em mutações, o vírus se adapta ao seu novo hospedeiro, digamos, alguns animais com os quais os morcegos estão em contato frequente. Todo o processo é retomado à medida que o vírus se move desse hospedeiro intermediário para as pessoas.

No caso do SARS1, os pesquisadores documentaram as sucessivas mudanças em sua proteína spike à medida que o vírus evoluiu passo a passo para um patógeno perigoso. Depois de passar de morcegos para civetas, houve mais seis mudanças em sua proteína spike antes de se tornar um patógeno leve nas pessoas. Após mais 14 mudanças, o vírus se adaptou muito melhor aos humanos e, com mais 4, a epidemia decolou.

Mas quando você procura as impressões digitais de uma transição semelhante no SARS2, uma estranha surpresa o aguarda. O vírus quase não mudou, pelo menos até recentemente. Desde a sua primeira aparição, ele estava bem adaptado às células humanas. Pesquisadores liderados por Alina Chan, do Broad Institute, compararam o SARS2 com o SARS1 em estágio avançado, que até então estava bem adaptado às células humanas, e descobriram que os dois vírus estavam igualmente bem adaptados. “Quando o SARS-CoV-2 foi detectado pela primeira vez no final de 2019, ele já estava pré-adaptado à transmissão humana de forma semelhante à epidemia tardia do SARS-CoV”, escreveram.

Mesmo aqueles que pensam que a origem do laboratório é improvável concordam que os genomas do SARS2 são notavelmente uniformes. O Dr. Baric escreve que “as cepas iniciais identificadas em Wuhan, China, mostraram diversidade genética limitada, o que sugere que o vírus pode ter sido introduzido a partir de uma única fonte”.

É claro que uma única fonte seria compatível com a fuga de laboratório, e menos compatível com a enorme variação e seleção envolvidas no “processo de evolução”.

A estrutura uniforme dos genomas do SARS2 não dá indícios de qualquer passagem por um hospedeiro animal intermediário, e nenhum desses hospedeiros foi identificado na natureza.

Os defensores da emergência natural sugerem que o SARS2 ficou incubado em uma população humana ainda a ser encontrada antes de ganhar suas propriedades especiais. Ou que saltou para um animal hospedeiro fora da China.

Todas essas conjecturas são possíveis, mas um tanto forçadas. Os defensores do vazamento de laboratório têm uma explicação mais simples. O SARS2 foi adaptado às células humanas desde o início porque foi cultivado em camundongos humanizados ou em culturas de laboratório de células humanas, exatamente como descrito no pedido de financiamento do Dr. Daszak [feito ao Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas]. Seu genoma mostra pouca diversidade porque a marca registrada das culturas de laboratório é a uniformidade.

Os defensores da fuga de laboratório brincam dizendo que de fato o vírus SARS2 infectou uma espécie hospedeira intermediária antes de se espalhar para as pessoas – um camundongo humanizado do Instituto de Virologia de Wuhan.

3) O local de clivagem pela furina.

O local de clivagem da furina é uma parte muito pequena da anatomia do vírus, mas exerce grande influência em sua infectividade. Ele fica no meio da proteína spike do SARS2. Também está no centro do dilema sobre de onde veio o vírus.

A proteína spike tem duas subunidades com funções diferentes. A primeira, chamada S1, reconhece o alvo do vírus, que é uma proteína chamada enzima conversora de angiotensina-2 (ou ACE2), a qual preenche a superfície das células que revestem as vias aéreas humanas. A segunda subunidade, S2, ajuda o vírus, uma vez ancorado na célula, a se fundir com a membrana da célula. Depois que a membrana externa do vírus se aglutina com a da célula atingida, o genoma viral é injetado na célula, sequestrando sua maquinaria de produção de proteínas e a forçando a gerar novos vírus.

Mas esta invasão não pode começar até que as subunidades S1 e S2 tenham sido separadas. E ali, bem na junção S1/S2, está o local de clivagem pela furina que garante que a proteína spike será clivada [“cortada”, “aberta”] exatamente no lugar certo.

O vírus, um modelo com design econômico, não anda por aí carregando um facão. Ele depende da célula para fazer a clivagem por ele. As células humanas têm uma ferramenta de corte de proteínas em sua superfície conhecida como furina. A furina cortará qualquer cadeia de proteína que carregue seu local-alvo de corte. Tal alvo é justamente a sequência de unidades de aminoácidos prolina-arginina-arginina-alanina, ou PRRA, em forma de sigla. E PRRA é a sequência de aminoácidos no centro do local de clivagem do SARS2.

Os vírus têm todos os tipos de truques inteligentes, então por que o local de clivagem pela furina se destaca? Porque de todos os beta-coronavírus conhecidos relacionados ao SARS, apenas o SARS2 possui um local de clivagem pela furina. Todos os outros vírus têm sua unidade S2 clivada em um local diferente e por um mecanismo diferente.

Como então o SARS2 adquiriu seu local de clivagem pela furina? Ou o local evoluiu naturalmente, ou foi inserido por pesquisadores na junção S1/S2 em um experimento de ganho de função.

Considere a origem natural primeiro. Duas maneiras de os vírus evoluírem são por mutação e por recombinação. Mutação é um processo de alteração aleatória no DNA (ou RNA, no caso do coronavírus), que geralmente resulta na troca de um aminoácido por outro em uma em uma cadeia proteica. Muitas dessas mudanças prejudicam o vírus, mas a seleção natural retém as poucas mutações que fazem algo útil. Mutação seria o processo pelo qual a proteína de pico SARS1 gradualmente mudou suas células-alvo preferidas indo de morcegos para civetas, e depois para humanos.

A mutação parece uma maneira menos provável de o local de clivagem pela furina do SARS2 ter aparecido, mesmo que a hipótese não possa ser completamente descartada. As quatro unidades de aminoácidos do local estão todas juntas e todas no lugar certo na junção S1/S2. A mutação é um processo aleatório desencadeado por erros de cópia (quando novos genomas virais estão sendo gerados) ou por decaimento químico de unidades genômicas. Portanto, normalmente afeta aminoácidos únicos em diferentes pontos de uma cadeia de proteínas. Uma cadeia de aminoácidos como a do sítio de clivagem da furina é muito mais provável de ser adquirida em conjunto através de um processo bastante diferente conhecido como recombinação.

A recombinação é uma troca inadvertida de material genômico que ocorre quando dois vírus invadem a mesma célula e sua prole resultante é montada com pedaços de RNA pertencentes a ambos. Os beta-coronavírus só se combinam com outros beta-coronavírus, mas podem adquirir, por recombinação, quase qualquer elemento genético presente no pool genômico coletivo. O que eles não podem adquirir é um elemento que o pool não possui. E nenhum beta-coronavírus conhecido relacionado ao SARS, a classe à qual o SARS2 pertence, possui um local de clivagem pela furina.

Os defensores do surgimento natural dizem que o SARS2 poderia ter captado o local de clivagem de algum beta-coronavírus ainda desconhecidos. Mas os beta-coronavírus relacionados à SARS de morcego evidentemente não precisam de um local de clivagem de furina para infectar células de morcego, portanto, não há grande probabilidade de que algum de fato possua um e, de fato, nenhum foi encontrado até agora.

O próximo argumento dos que defendem o surgimento natural é que o SARS2 adquiriu seu local de clivagem pela furina de pessoas. Um antecessor do SARS2 poderia estar circulando na população humana por meses ou anos até que, em algum momento, adquiriu um local de clivagem pela furina a partir de células humanas. Eles estaria, então, pronto para causar uma pandemia.

Se é isso que aconteceu, deveriam haver vestígios nos registros de vigilância hospitalar das pessoas infectadas pelo vírus em evolução lenta. Mas nenhum veio à tona até agora. De acordo com o relatório da OMS sobre as origens do vírus, os hospitais sentinela da província de Hubei, onde Wuhanes está localizada, monitoram rotineiramente doenças semelhantes à gripe e “não foram observadas evidências que sugiram transmissão substancial de SARSCoV-2 nos meses anteriores ao surto em dezembro.”

Portanto, é difícil explicar como o vírus SARS2 obteve seu local de clivagem de furina naturalmente, seja por mutação ou recombinação.

A partir daí, resta apenas a hipótese do experimento de ganho de função. Para aqueles que pensam que o SARS2 pode ter escapado de um laboratório, explicar o local de clivagem pela furina não é problema algum. “Desde 1992, a comunidade de virologia sabe que a única maneira segura de tornar um vírus mais mortal é dar a ele um local de clivagem pela furina na junção S1/S2 no laboratório”, escreve o Dr. Steven Quay, um empresário de biotecnologia interessado nas origens da SARS2. “Pelo menos onze experimentos de ganho de função, adicionando um local de furina para tornar um vírus mais infeccioso, estão publicados na literatura aberta, incluindo [pela] Dra. Zhengli Shi, chefe de pesquisa de coronavírus no Instituto de Virologia de Wuhan”.

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Foto: Hans Reniers